segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DEUSA - A GRANDE MÃE


MÃE DIVINA


Por Cida De Stefano

 A Deusa e o Cosmos

A Grande Deusa-Mãe tem sido venerada por todos os povos em todos os tempos. Apesar de seus diversos atributos, títulos e poderes, todas as divindades femininas emanam de uma única fonte: do princípio de Vida do Universo. Essa realidade suprema é chamada “A Deusa” e sua qualidade essencial é conter tudo, estar em tudo.
Nos relatos a respeito da origem do mundo, fala-se da Criação emergindo de um caos preexistente, ou de um espaço sombrio, sem limites nem forma, designado às vezes pelo nome de “águas primordiais” e que se supõe conter a totalidade das potencialidades. Dessa totalidade caótica nascem entidades distintas que o espírito humano classifica como boas ou más. Assim, a mitologia criou a imagem de boas mães, como Sofia e a Virgem Maria, mas também criou as que são consideradas más, como as Górgonas com cabelos de serpentes cujo olhar petrifica, como Sekmet (Egito), sedenta de sangue, e outras figuras ambivalentes como Hera e Afrodite (Grécia), Kâlî (Índia), Hine-nui-te-po (Oceania) e muitas outras. Essa tendência da Deusa de representar os complementares contrários – o mundo ctoniano e o celeste – caos e ordem, obscuridade e luz, esterilidade e fecundidade, destruição e criação, etc. – é habitualmente simbolizada por imagens circulares que lembram o Oroboros, a serpente que engole a própria cauda. A imagem da lua que, durante o mês lunar, passa de uma fina claridade crescente à plenitude, da obscuridade à claridade e vice-versa, é também um símbolo universal da Deusa.


O espírito humano tende a fragmentar e a categorizar. Ao contrário, o mito da Deusa nos faz conceber um único princípio de vida, pois Seu corpo – o Cosmos – engloba os diversos estados da Vida, os diferentes estados da existência. Assim, nascimento e morte são fases distintas de um mesmo processo contínuo, em que nada morre, mas tudo se transforma.


A vida, a morte e o processo de regeneração
                
A maior parte das mitologias divide o Universo em céu – onde habitam os deuses, Terra – onde estão os humanos, e as profundezas da Terra e do mar – onde fica o reino dos mortos. Os antigos mitos da humanidade, ou seja, os da Suméria e do Egito, falam de muitas deusas, como Ereskigal e Neith, que foram exiladas no inferno.

O mito sumério de Ereskigal e Inanna mostra bem a ambivalência do princípio feminino do universo em seus aspectos de vida e morte e a constante possibilidade de regeneração. Inanna desce aos infernos para fazer voluntariamente a experiência de sua própria morte e de sua regeneração. Antes, porém, de descer ao reino de Ereskigal, seu lado sombrio, ela deve atravessar sucessivamente sete portas e despojar-se, a cada vez, de uma peça de seu vestuário, abandonando, pouco a pouco, os sinais de seu poder. Nos infernos, Ereskigal fixa-a com seu olhar de morte, mata-a e suspende seu cadáver em um gancho. Só quando propõe que Dumuzi, seu muito amado filho e esposo, tome seu lugar, é que Inanna consegue deixar os infernos. Ereskigal é a rainha do “Grande Mundo de Baixo” enquanto Inanna é a “Rainha do Mundo de Cima”. Ereskigal divide os mesmos atributos com Inanna, simbolizando ambas, portanto os dois aspectos de um mesmo princípio.

Os mitos agrários falam do mesmo processo de vida, morte e regeneração. Em todos eles, a criança simboliza a semente que é colocada na terra para que germine durante o inverno e renasça sob a forma de uma nova planta que cresce e amadurece, para ser finalmente colhida. Dessa forma, o ciclo agrário anual tornou-se uma alegoria da vida humana. Em Elêusis, os mistérios de Deméter compreendiam ritos secretos durante os quais os iniciados morriam para a vida passada antes de nascer para uma nova vida. Nesse meio tempo, sua alma deveria retornar à origem. Reviviam assim, de maneira simbólica, a descida aos Infernos e o retorno à terra da divindade. Esse processo é personificado pela Deusa, em que o grão é o símbolo da alma, é a semente que se transforma em árvore. Aqui a morte é vista como anunciadora da regeneração.


A Deusa das águas primordiais            

Muitas mitologias concebem o caos primordial como uma obscura extensão de águas sem limites. Muitas vezes o mundo é criado pela própria água, outras vezes, por uma divindade criadora que coexiste com a água desde toda a eternidade.

Esse símbolo da água como fonte de vida aparece em várias
tradições. No cristianismo, é exteriorizado na prática do batismo, na medida em que o novo adepto renasce para uma nova vida. As fontes batismais foram, muitas vezes, comparadas ao útero da Virgem Maria.

No Egito do período pré-dinástico, Neith, a deusa do Oceano, personificava as águas celestes e terrestres. Deusa primordial, continha o mundo e todas as criaturas vivas.

Os mares e os oceanos têm sido comparados às águas primordiais. A maior parte das “deusas-mães”, como Ísis, no Egito, foi associada ao mar ou ao oceano, ou ainda considerada como nascida dele. Como a lua está intimamente ligada às marés, muitas culturas deram às deusas lunares um poder total sobre as extensões marítimas. A vaca divina com cornos em forma de lua crescente simboliza a lua em muitas mitologias indo-européias, e tem como parceiro o touro, que é seu amante e filho. O touro é um dos símbolos de Poséidon, deus grego do mar. Afrodite, deusa do amor entre os gregos, na versão de Hesíodo também nasce das águas do mar fecundadas pelo sêmen de Urano, sendo considerada, pelos gregos, a Grande Deusa das águas (Revista SER no 8, pág. 42 e seguintes).


A Terra-Mãe

A Deusa também é um símbolo do planeta terra e, como tal, está encarnada nas montanhas, nos vulcões, no curso das águas, nos desertos e em todos os acidentes geográficos.

Como símbolo da Terra-Mãe, podemos citar a deusa tibetana Klu-rgyalmo, “a rainha que colocou em ordem o mundo visível”, criando a abóbada celeste com a calota de seu crânio. Com sua carne, fez a terra; com seus ossos, os oceanos e os mares; com seu sangue, os cursos de águas; com seus dois olhos, fez o sol e os planetas; com seus dentes de cima, criou a lua. O trovão, o raio e a chuva nasceram de sua voz, de sua língua e de suas lágrimas.

Muitas tradições trazem a figura da Deusa como representante do nosso planeta. Dentre elas, a mais conhecida é Gaia, a deusa grega, símbolo da natureza, com seus poderes de criação e destruição.


A Ísis universal

Na tradição egípcia, o princípio feminino do universo é representado por Ísis – a Grande Deusa-Mãe. O hieróglifo de seu nome é um trono, e freqüentemente ela é representada com um trono sobre a cabeça. Desde a primeira dinastia, os faraós fizeram-se chamar de “Filhos de Ísis”. O trono real era considerado o seio da deusa, e o néctar que saía de seu peito lhes conferia o direito divino de reinar.

Os gregos, após conquistarem o Egito,  propagaram o culto a Ísis pelo mundo ocidental. Ísis é a transcrição grega de Esi, que significa “aquela que está sobre o trono”, isto é, a rainha. Já no século II de nossa era, Plutarco a descrevia  como “o princípio feminino da natureza [...] que tem uma quantidade enorme de nomes [...], pois ela pode tomar todo tipo de aspecto e formas.”

Assim, muitos de seus atributos receberam diversos nomes na mitologia grega e romana,  e espalharam-se por todo o planeta, chegando até o cristianismo como a Virgem Maria.


A Grande Deusa na tradição hebraica

Shekhina/Sabedoria é a incognoscível e incorpórea parceira de Iahvé.  Nos mitos gnósticos judaicos, Shekhina criou o mundo e o primeiro homem, mas, devido ao pecado de cada geração, desde Adão até os Sodomitas, ela se afasta pouco a pouco da terra, até encontrar refúgio no sétimo céu. A personificação de Shekhina foi, em parte, atribuída à Bíblia em aramaico que troca a fórmula hebraica “Eu moro” por “a morada da minha Shekhina”. Na tradição hebraica a Deusa foi reverenciada sob o nome de Shekhina/Sabedoria; mas, sob o aspecto de Eva, foi aviltada e despojada de sua divindade. Eva (Hawwâh em hebraico) significa “mãe de todos os viventes”, mas foi rejeitada por ser considerada como a origem de todos os males do homem.


Virgem Maria - a Grande Deusa do mundo cristão

O tema mítico que originou o relato do nascimento, vida e morte de Jesus Cristo teve origem no Oriente Próximo, muito antes da era cristã. Maria, como muitas deusas-mães que a precederam (como a Deméter dos gregos, a  Ísis dos egípcios, a Ashtar/Astarté dos sumérios e muitas outras), deu nascimento a um deus encarnado que morreu para salvar a humanidade e ressuscitou pouco depois.

A Bíblia não faz muitas referências a Maria. Ela aparece pela primeira vez na Anunciação como “a mãe que traz o Salvador”. No entanto, desde o século V a Santa Virgem foi considerada co-redentora e intercessora privilegiada entre a humanidade e seu filho. A partir desse momento, torna-se milagrosa, inspira peregrinos em massa no mundo inteiro e é objeto de um culto que lhe é próprio.

No mundo cristão é venerada com vários nomes que lembram, sobretudo, sua capacidade de auxiliar os que sofrem. Assim, é muito solicitada sob os nomes de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora da Consolação, Nossa Senhora dos Prazeres, entre outros. É como se os homens intuíssem, de alguma forma, o poder de auxílio e cura contido no princípio feminino do universo.
                Maria Madalena ou, mais precisamente, Maria de Magdala, que também esteve muito presente na vida de Cristo, é uma figura central entre os gnósticos, para os quais o conhecimento é a única via em direção ao divino. Enquanto prostituta arrependida, Maria Madalena possuía um conhecimento perfeito das coisas deste mundo; enquanto confidente ou, segundo certas tradições, esposa de Cristo, era um reservatório de sabedoria espiritual. Buscou o conhecimento de Deus encarnado no concreto da vida. Na Pistis Sophia, um texto egípcio do século III, Jesus louva várias vezes o saber de sua Mãe e afirma: “Maria de Magdala e João devem ser colocados acima de todos os meus discípulos e de todos os homens que serão iniciados nos mistérios do Inefável”.



A Deusa guerreira

As deusas guerreiras são freqüentemente associadas ao sol e às estrelas. Os milhões de corpos celestes poderiam facilmente ser comparados a um exército de soldados reluzentes, esforçando-se para combater a obscuridade, isto é, combater a ignorância. Na mitologia eslava, Zarya, a deusa da aurora, é uma grande guerreira, que nasceu armada para dissipar as forças da noite. Muitas deusas guerreiras são representadas vestindo uma armadura flamejante, ou cobertas de ouro, de prata e de jóias.

Os poemas sufis são, na aparência, poemas de amor, mas, na verdade, descrevem, em linguagem cifrada, a sede pelo divino experimentada pelo místico. Nesses poemas, a “Bem-Amada” simboliza a divindade, ou a alma, e o “amante” é o místico. Deus aqui é representado como sendo feminino. A “Bem-Amada” descrita pelos sufis tem um aspecto guerreiro. Ela é a quintessência de uma deusa virgem guerreira, alternadamente feroz e ameaçadora, doce e sedutora.


A Deusa oriental da compaixão

A divindade preferida dos chineses chama-se Kouan-Yin, a deusa da Clemência. É conhecida como “Aquela que escuta as preces, as queixas e os prantos”. Conhecida no Japão com o nome de Kan-non (ou Kannon), foi importada da China por missionários budistas, sob a forma de um bodhisattva.

Segundo a teologia budista, um bodhisattva é um ser esclarecido que, durante muitas gerações de meditação e de contemplação, aprendeu a escapar ao ciclo de mortes e renascimentos que aflige o resto da humanidade, mas escolheu reencarnar-se para ajudar os outros seres humanos a buscarem a salvação.

Kouan-yin era, na origem, Avalokitesvara, um discípulo nascido de uma lágrima derramada por Buda diante dos sofrimentos da humanidade. Essa transformação em mulher pode, à primeira vista, parecer um enigma numa religião que considera as mulheres menos perfeitas do que os homens. Mas não podemos esquecer que o budismo, quando foi introduzido na China (no séc. III), sofreu  influência do taoísmo e do confucionismo. É possível então concluir que Avalokitesvara foi fundido em um sincretismo com uma divindade feminina local. Se levarmos em conta que um bodhisattva reúne em si o saber e a compaixão, não é de se surpreender que Avalokitesvara tenha sido unificado à Deusa.  Como a Virgem Maria do mundo cristão, Kouan-yin ajuda os que a procuram nas horas difíceis, acolhendo-os  e dando provas de clemência e piedade.


A Deusa e a busca do herói

A Deusa está estreitamente relacionada à busca do herói. Algumas vezes é ela que inspira a sua jornada; outras vezes, aparece para ajudá-lo e guiá-lo em sua tarefa, ou para colocar-lhe obstáculos no caminho. Pode ainda aparecer como o obstáculo final, como no caso de Medusa, a Górgona, que devia ser morta por Perseu. Mas ele não seria capaz de liquidá-la sem a ajuda de Atena, a deusa da guerra e da sabedoria (Revista SER no 7, pág. 33). Tudo acontece como se o herói fosse um simples peão no tabuleiro de xadrez celeste, em torno do qual se defrontam os múltiplos aspectos da Deusa.
A busca pode ser interpretada como uma viagem de descoberta, a viagem do herói que sai em busca do próprio aperfeiçoamento, tentando conciliar dentro de si os vários aspectos da Deusa.

A conquista é simbolizada por uma “recompensa”, geralmente apresentada na figura de uma bela jovem, símbolo de sua própria alma. Sua prova consiste em “se comportar” de maneira apropriada em cada um dos aspectos da Deusa a fim de atingir o equilíbrio interior.


A Deusa e o trabalho gurdjieffiano

Fizemos acima uma síntese de algumas faces da Deusa em diversas tradições. Poderíamos relatar inúmeras outras, mas essa não é a proposta deste trabalho. O importante aqui é notar que, sob a forma de um mito, o mesmo aspecto é relatado em várias tradições. Simbolizam os vários estados da Energia Vital, que vão do mais grosseiro ao mais sutil.

Portanto, a energia que tudo permeia no universo é uma única energia, com diversos graus de materialidade, isto é, diferentes estados vibratórios.

Em seu Ensinamento, o Sr. Gurdjieff deixa claro que “o homem é uma imagem do mundo e é impossível estudar um sem estudar o outro”1. Diz que “o mundo é feito de movimentos ondulatórios ou de matéria em diferentes estados de vibração. A velocidade das vibrações está na razão inversa da densidade da matéria”2. Assim, “quanto mais elevada for a ‘densidade da matéria’, mais baixa será a ‘densidade de vibrações’ e vice-versa”3.

Portanto, o mundo manifestado possui vários planos de diferentes graus de materialidade.  Com o homem, acontece a mesma coisa. Ele é um Universo em miniatura. Diz o Sr. Gurdjieff: “É necessário compreender bem a ideia da completa materialidade de todos os processos interiores, os psíquicos, intelectuais, emocionais, voluntários e outros, inclusive as aspirações poéticas mais exaltadas, os êxtases religiosos e as revelações místicas”4.

Em nossa vida cotidiana, vivemos em estados vibratórios muito densos, se comparados com as vibrações mais finas existentes em outros planos do universo. Isso porque a energia que nos anima está atuando sem que tenhamos consciência dela. Não entramos em contato direto com ela. Vivemos apenas os estados mais grosseiros da Deusa.

A ideia central do trabalho gurdjieffiano é a idéia de evolução. A grande meta neste mundo deve ser a evolução do nosso Ser. Para atingir essa meta, precisamos refinar nossa energia vital. No número anterior desta publicação, falamos da possibilidade da transformação dessa energia, usando o mito da deusa Vênus para explicá-la sob o enfoque do Ensinamento gurdjieffiano (Revista SER no 8, pág. 44). Vimos que é a atenção consciente sobre a energia vital que leva à sua sutilização e conseqüente contato com os níveis superiores do universo.

Conclusão

Portanto, os vários aspectos da Mãe Divina possuem materialidades de ordens diversas que só podem ser acessadas por meio de um trabalho consciente. Ao estabelecer um contato direto com o potencial energético que é a grande Deusa, começamos a tocar um fino sentimento de alegria, paz e felicidade em nosso peito. A partir daí nossa vida cotidiana adquire uma outra dimensão. Passamos a agradecer o simples fato de existir. Como heróis, renascemos para uma nova vida cheia de cores e possibilidades.



Notas 
1  P. D. Ouspensky. Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 
cap. 4, págs. 95 e 96.
2  P. D. Ouspensky. Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 
cap. 5. pág.108.
3  P. D. Ouspensky. Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 
cap. 9, pág. 198.
4  P. D. Ouspensky. Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 
cap. 9, pág. 228.

(Extraído do site ogrupo.org).

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